Aprender Design

18 de set de 2025

Interfaces que elevam ou substituem?

Zeh Fernandes

Zeh Fernandes

Founding Designer na Resend e Professor no Base Design de Produtos Digitais

Douglas Engelbart, Augmenting Human Intellect, 1962

Existe uma cena no cinema que consegue explicar muito bem o conceito de Tools for Thought. O filme Searching (2018) se passa todo na perspectiva de telas de computador. O pai, após uma ligação frustrada para a polícia sobre o desaparecimento da sua filha de 16 anos, decide investigar por conta própria onde ela pode estar. E para organizar suas ideias e informações abre uma planilha do Excel e começa a estruturar tudo que está na sua cabeça. Enquanto avança nas investigações vamos acompanhando como cada nova informação é atualizada na planilha.

Ferramentas para o pensamento ao longo história da humanidade. Maggie Appleton, 2022

Quanto maior nossa familiaridade com uma ferramenta, mais fluentes nos tornamos em utilizá-la para pensar, seja a escrita, rabiscos, desenhos ou... planilha. Nosso pensamento não ocorre apenas dentro da cabeça: depende das interfaces que escolhemos para dialogar com o mundo. Como McLuhan citou

"We shape our tools and thereafter our tools shape us”. “Nós moldamos nossas ferramentas e, depois, nossas ferramentas nos moldam.”

Recentemente, um estudo do MIT de 2025 com 54 participantes investigou o impacto do uso do ChatGPT na escrita de redações. O estudo indicou que o uso recorrente da IA pode, a longo prazo, prejudicar a capacidade de lembrar o que foi escrito, construir argumentos originais e desenvolver novas redações.

Interfaces complementares vs Interfaces competitivas

Esse estudo reacende um framework conceitual pouco discutido, mas extremamente útil. O das interfaces cognitivas competitivas vs interfaces cognitivas complementares, desenvolvido por David Krakauer (2016).

  • Interfaces complementares são aquelas que nos fortalecem cognitivamente. Um exemplo clássico é o ábaco: uma vez aprendido seu uso, a pessoa consegue continuar realizando operações mesmo sem ele. A interface expõe seu “algoritmo” de cálculo, tornando possível repetir o procedimento mentalmente.
  • Interfaces competitivas substituem completamente uma função cognitiva sem expor seus mecanismos. A calculadora é um exemplo. Ela facilita o cálculo, mas se alguém que depende dela a perde, talvez não saiba mais fazer as contas. O mesmo vale para o GPS. Seu uso constante não nos torna melhores navegadores. Na verdade, ao terceirizarmos toda a orientação, abdicamos desse senso espacial.
O impacto do uso do ChatGPT na escrita de redações. MIT, 2025

Em muitos casos, não desejamos ser melhores navegadores, ou nosso uso de cálculos é tão trivial que não precisamos de constante treinamento mental. Mas isso deveria ser uma escolha nossa como usuários. Há uma tendência no desenvolvimento de produtos digitais em focar apenas no objetivo final, em um design sem fricção, mágico. No curto prazo, ganhamos velocidade; no longo, arriscamos atrofiar habilidades que antes cultivávamos.

Esse dilema se repete desde Sócrates, que temia que a escrita corroesse a memória, até o estudo do MIT (2025) sobre o ChatGPT. Na perspectiva da ecologia cognitiva, toda nova interface reorganiza nosso ambiente mental, criando perdas e ganhos. A IA tem um poder tremendo de nos ajudar a “pensar o impensável” e a expandir nossas possibilidades. Mas, para isso, precisamos estar conscientes dos atalhos cognitivos que ela propõe e decidir quando aceitá-los ou rejeitá-los. O verdadeiro ponto de atenção não é o julgamento moral da ferramenta, mas o modo como ela molda o que somos capazes de pensar, lembrar e criar.

Para designers de interface, a partir do momento em que se faz essa distinção, torna-se possível propor soluções que não apenas garantam a execução da tarefa, mas também promovam aprimoramento. Na simbiose entre humanos e máquinas, essa relação pode gerar benefícios reais.

Memex, uma máquina imaginária de “extensão da memória”. “As We May Think” - Vannevar Bush, 1945.

Vamos imaginar alguém que utiliza o ChatGPT para revisar seus textos em outro idioma. Muitas vezes essa pessoa pode revisar sozinha, ainda que com menor frequência, mas pela praticidade e velocidade obtém em instantes uma versão corrigida e melhorada. O que isso provoca? Reduz seu aprendizado do idioma estrangeiro.

Porém, se paramos para pensar em formas de transformar essa interface competitiva em uma interface complementar, surgem ideas como:

  • Exibir além do texto corrigido, a mudança e o porque foi corrigido.
  • Enviar um email semanal com os três erros mais comuns.
  • Apontar um erro e pedir que a pessoa tente corrigi-lo antes de mostrar a versão final.

    E muitas outras possibilidades sem comprometer a agilidade da tarefa. Só esse exercício já demonstra o quão poderoso é esse framework para o design de interfaces.

Para o usuário, não do ponto de vista de quem projeta, a escolha consciente dos atalhos é uma camada importante. A intenção e agência são fatores importantes a serem considerados.

Existe diferença em falar um "te amo" pessoalmente, escrever em uma mensagem ou apertar um botão de autocompletar.

O primeiro mouse conectado à sua estação de trabalho com monitor. Doug Engelbart Institute, 1964.

Da mesma forma que, para ter uma vida saudável, cuidamos da nossa alimentação e do nosso corpo vamos precisar ficar mais atentos a onde colocar nossa energia. O mesmo vale para nossos processos criativos e educacionais. Em vez de apenas pedir a correção do texto, é possível solicitar uma crítica como faria um editor de revista, ou então pedir a lista de cinco autores que argumentam contra a ideia central.

Doug Engelbart, inventor do mouse e pioneiro da interação humano-computador, propôs que o verdadeiro potencial das interfaces computacionais não está em nos poupar esforço, mas em expandir o que somos capazes de perceber, pensar e criar juntos. Seu projeto de vida, Augmenting Human Intellect, partia da hipótese de que, ao projetar interfaces que amplificassem nossa capacidade cognitiva, seríamos capazes de entender problemas cada vez mais complexos como sociedade.

Estamos entrando em uma nova era de ferramentas, e cabe a nós moldá-las para que, no futuro, elas nos moldem de maneiras das quais possamos nos orgulhar.

Zeh Fernandes é Founding Designer na Resend e professor na matéria Pensamento Computacional no curso de formação Base Design de Produtos Digitais.

Assista uma aula livre com Zeh.