31 de mai de 2023
Vivendo no limiar: o lugar do design na web3
Douglas Cavendish
UX Design Expert no Mercado Livre.

Há 27 anos, durante o fórum econômico mundial em Davos, o ciberativista John Perry Barlow entregava ao mundo o que viria a se tornar um dos principais tratados sobre a internet: a declaração de independência do ciberespaço.
É assim que Barlow inicia sua reflexão sobre o significado da internet:
“Governos do mundo industrial, vocês gigantes aborrecidos de carne e aço, eu venho do espaço cibernético, o novo lar da mente. Em nome do futuro, eu peço a vocês do passado que nos deixem em paz. Vocês não são bem-vindos entre nós. Vocês não têm a independência que nos une.” (Em tradução livre)
Eu acho curioso que ele fale “em nome do futuro”, porque muitos pontos levantados nesta carta se concretizaram de maneira espantosa.
Comunicação distribuída.
Mídia baseada em bits.
O novo lar da mente.
A declaração está cheia de outros exemplos como esses, que na época eram só conceitos, mas que foram paulatinamente se tornando uma realidade cotidiana para nós. Barlow compreendeu como poucos na época (e talvez até os dias de hoje) os tipos de fronteiras que a internet cruzaria. Poucos comentários são tão precisos para falar sobre os efeitos avassaladores do ciberespaço em nosso cotidiano quanto: “o novo lar da mente”. Para fazer um exercício de síntese extrema, eu tenderia a reduzir o discurso de Barlow na sua declaração em 2 pilares centrais: liberdade e autonomia. Para todos os efeitos, é esse o potencial que ele via e defendia que a internet poderia nos trazer.
Quem já assistiu o documentário “O Dilema das Redes” (Netflix), entende um pouco sobre como as empresas encontraram um modo de capitalizar a nossa atenção e para que finalidades isso tem sido usado, principalmente, ao longo da última década. No filme fica muito claro, inclusive, qual foi/é o papel do design no meio disso tudo: o de um agente mediador, capaz de alterar padrões de comportamento e rotinas diárias ao toque de uma tela. Do ping de uma notificação avisando novos likes - que desperta nas pessoas usuárias um ciclo de dopamina constante ao longo do dia; ao scroll infinito com vídeos curtos e narrativas simples - que enfiam pessoas em vórtices de consumo de tempo.
O design (sobretudo o que chamamos de UX Design - e tudo o mais que vem a reboque do termo) se tornou uma peça central para as dinâmicas deste capitalismo moderno, ágil e digital. A nossa geração inaugura um novo e incipiente período, que alguns chamam de “economia da atenção”; outros de “capitalismo de vigilância”; outros apenas de “inovação disruptiva”. Em resumo, os capitalistas (como é de costume) cooptaram o potencial libertário e de autonomia emanado pelos primeiros passos da internet. O design se beneficiou deste processo como poucas profissões fizeram, desempenhando um papel de fio condutor de experiências e se tornou uma poderosa ferramenta para escalar os negócios digitais, para algumas empresas essa escala chega a ser planetária.
Os 2 pilares de Barlow - Autonomia e Liberdade - são reverberados até hoje em dia e podem ser vistos bem no centro dos debates sobre a Web3. Mudam-se poucas coisas entre o discurso dele em 1996 e os conceitos que sustentam o ideário ativista pró-web3 (podemos chamar de cripto-ativismo também).
“A web3, diferente da web 2, não será dominada pelas grandes corporações. É um lugar onde as pessoas poderão ser livres e terão autonomia de verdade” - disse um colega durante uma entrevista que gravei recentemente com ele para o Extra podcast. No fundo, a intenção principal da internet como um todo (sobretudo de seus idealizadores, ainda que em épocas diferentes) sempre foi o de entregar para humanidade isso mesmo: mais liberdade e mais autonomia.
A web2 (status quo) libertou os modos de produção e circulação da informação, permitindo que qualquer perfil fosse capaz de criar conteúdos e distribuir isso dentro de redes sociais. Contudo, não foi capaz de libertar o ambiente onde isso tudo é produzido. Todo conteúdo criado, toda informação circulada, toda interação gerada, produz centenas de milhões de dados, que pertencem e são capitalizados por redes privadas - que possuem interesses próprios e regras específicas para controlar a autonomia das pessoas usuárias.
Barlow reivindicou autonomia frente aos interesses de grandes corporações, mas não foi o que aconteceu.
O que a web3 promete libertar agora é exatamente essa noção de participação, controle e monetização das atividades e interações nas redes, a partir de um ecossistema de recursos tecnológicos distribuídos, sem necessidade de usar os validadores de confiança tradicionais como os grandes conglomerados de tecnologia (provedores e servidores) e instituições públicas (reguladores e taxadores). Um ambiente que se distancia do status quo ao passo em que tudo no ciberespaço se torna mais descentralizado. Finanças descentralizadas (DeFi); Organizações Autônomas descentralizadas (DAO); Smart Contracts; Blockchains; são conceitos-chave cada vez mais presentes no vocabulário do mercado digital e que representam de uma forma muito direta esses valores libertários.
Tem um que de revolucionário ou de anarquismo misturado com neoliberalismo nesse movimento, é interessante e curioso ao mesmo tempo.
Interessante porque os caminhos apontados pela web3 mostram sim um potencial imenso de transformação tecnológica para a vida humana nos próximos anos, como: adoção de cripto moedas; metaversos; realidade virtual; NFTs; redes sociais fechadas que garantem o anonimato das pessoas; entre muitas outras tendências apontadas por especialistas.
E é curioso porque convida a pensar em como vamos lidar com as consequências de viver neste admirável mundo novo. Nossa legislação, por exemplo, mal dá conta de regulamentar a internet que temos hoje, quem dirá refletir essas transformações todas que batem à porta. Não preciso ir muito longe pra explicar os perigos potenciais de um ciberespaço sem regulação alguma, estamos cientes das consequências nefastas que a implementação de “uma simples rede social” provocou em Myanmar; ou da influência direta das redes de desinformação na política e na democracia nos últimos anos. Isso citando apenas 2 exemplos dos mais gritantes.
Barlow reivindicou liberdade das amarras regulatórias, mas isso não pode acontecer.
Parece que nós estamos vivendo em um limiar: de um lado, um mundo digital hipermoderno e avançado; do outro, um mundo real obsoleto e vagaroso. Um confronto de mundos, que de certa forma expõe também pra quem é feito cada lugar. Sim, isso porque acessar o mundo da web3 é hoje uma atividade de poucos. A própria linguagem, o vocabulário, os conceitos, as práticas, são ainda muito cifradas, exigem um alto nível de letramento digital.
Tá bem, era exatamente assim lá nos primórdios da internet, claro. Um recurso também de poucos, exclusivo para quem entendia e dominava o assunto - talvez um punhado de jovens com maior poder aquisitivo e letramento digital. A verdade é que a internet só se popularizou e se tornou um recurso de fato planetário quando houve cooperação e investimento público-privado, de modo que é difícil acreditar que o movimento de cooptação do capital não ocorrerá novamente. Também, é claro, o design teve seu papel nessa democratização, por meio do desenvolvimento de interfaces e produtos digitais cada vez mais amigáveis e relevantes para resolver os problemas das pessoas no dia a dia.
Qual será então, ou melhor, qual deve ser o papel do design agora na web3?
É difícil apontar algum caminho com muita certeza, pois está tudo em um estágio ainda muito inicial, com baixa adoção e poucos serviços realmente úteis para a maior parte da população. Mas é bem possível que nossa profissão seja cada vez mais atravessada pelos desafios dos dilemas éticos próprios desta época. E claro, esse novo momento vai exigir designers com maior letramento digital, que entendam como funciona o mundo cripto, como se navega por ele, como se projeta pra ele.
Por exemplo: qual deve ser o processo para projetar interfaces de sistemas baseados em protocolos para Dapps (descentralized-apps)? Ou como deve ser desenhado o fluxo de onboarding de uma plataforma onde as pessoas usuárias é que decidem onde e como vão usar seus dados? Como devem ser as features que vão garantir a privacidade e o anonimato das pessoas sem permitir que se criem redes maliciosas (de todo tipo)? Como habilitar confiança a partir da transparência?
O melhor a se fazer agora é se preparar. Busque leituras, vídeos, podcasts e priorize os que tratam da relação entre web3 e design. Encontre bons influencers para seguir, mas procure não romantizar o assunto. Tente puxar conversas com quem já está trabalhando em algum projeto, isso vai te dar uma perspectiva mais próxima da realidade. Ah, e ouve esse episódio do Extra Podcast, eu converso com especialistas e designers que estão desenvolvendo projetos bem interessantes na web3.
Vou terminar com outro trecho curioso da declaração de independência do ciberespaço de John Perry Barlow (tradução livre):
“[…] Estamos formando nosso próprio Contrato Social. Essa maneira de governar surgirá de acordo com as condições do nosso mundo, não do seu. Nosso mundo é diferente. O espaço cibernético consiste em idéias, transações e relacionamentos próprios, tabelados como uma onda parada na rede das nossas comunicações. Nosso é um mundo que está ao mesmo tempo em todos os lugares e em nenhum lugar, mas não é onde as pessoas vivem. Estamos criando um mundo que todos poderão entrar sem privilégios ou preconceitos de acordo com a raça, poder econômico, força militar ou lugar de nascimento […] A única lei que todas as nossas culturas constituídas iriam reconhecer é o Código Dourado. Esperamos que sejamos capazes de construir nossas próprias soluções sobre este fundamento. Mas não podemos aceitar soluções que vocês estão tentando nos impor. Nos Estados Unidos vocês estão criando uma lei, o Ato de Reforma das Telecomunicações, que repudia sua própria Constituição e insulta os sonhos de Jefferson, Washington, Mill, Madison, deTocqueville e Brandeis. Esses sonhos precisam nascer agora de novo dentro de nós.”